Dentro da noite

A razão que hoje põe-me à escrita não é coisa que seja inédita para o resto da humanidade. Mas para minha trivial existência enquanto moça da cidade grande, que abandonou o interior pela falta de grandes acontecimentos, arrisco dizer que ultrapassa o conceito de anedota, apesar de não lhe assegurar cunho fantástico.  
Desloquei-me dias atrás para aquela cidadezinha que contigo comentei, a fim de apresentar a mesma peça que me alimenta desde que cheguei a terras cosmopolitas, mas que, como bem sabes, para que seja possível vestir-me adequadamente - além de comer bem - preciso também atuar como dançarina e acompanhante, algumas vezes apenas. Posso inclusive contar nos dedos as vezes que precisei acompanhar alguma alma solitária este ano. O caminho foi menos cansativo do que supus. Viajamos com o carro do diretor, que por todo o percurso dirigiu com atenção considerável, e só desviava o olho das ruas terrosas e escuras para buscar o rosto do figurinista, sentado ao seu lado, escondido no amontoado de sacolas cheias de roupas e sapatos nossos. No banco de trás, apertando-me os quadris, mais quatro moças exprimiam-se 
O combinado era que cada uma das garotas tivesse um quarto individual no hotel, uma vez que passaríamos três dias na cidade e nunca suportamos mais de algumas horas juntas numa situação ociosa, como quando entre uma apresentação e outra – num hiato de um dia entediante. E também nosso diretor prometeu, antes que não topássemos a vinda, que não nos exporia aos homens da cidadezinha, que era pouco povoada, mas possuía genuína natureza em imensa extensão de terra solitária e fresca, e no mais, seria um verdadeiro caos tamanha ousadia. A verdade é que, mesmo eu, moça tenra, fui intoxicada por essas garotas que trabalham comigo como atrizes e também como acompanhantes, e não deve ser difícil compreender que dividir o palco com elas já me é grande sacrifício há anos, a cama então, me seria perfeitamente insuportável dessa vez.  
Eu estou tão triste agora, talvez mais do que eu já estava quando viajamos. Porém não mais sinto a raiva que se apossou de meus pelos quando chegamos ao hotel, se é que assim posso chamar aquele lugar, tomado por mofo e cupim, e descobrimos, as cinco garotas, que não só dormiríamos no mesmo quarto, como também seria necessário dividir o banheiro. Na mesma cama só durmo com Tina, que apesar de ter sido hostil comigo muitas vezes, nunca me direcionou grandes ofensas. Voltarei a falar com mais cuidado de Tina, não por me importar de fato com a descrição de sua pessoa, mas por sua pequena participação no acontecido.  
Apresentamos a peça no auditório do colégio municipal, que era anexado a uma casa de hospedagem, propriedade de uma congregação de freiras. Era uma construção grande e muito mimosa, de arquitetura germânica em cores cinzas, bege e vermelho. A cor cinza escura estava por todas as paredes, inclusive no interior das salas do colégio, um cinza escuro bem-acabado em largos rodapés beges, que também coloriam as venezianas. Da peça bem deves lembrar-te. Desde que me assististe a última vez, alteramos poucas coisas sem o consentimento do roteirista, que por sinal já não mais trabalha conosco. Dizem que provocava encantamentos com seus monólogos trágicos, e certo dia foi convidado para lecionar Teatro numa grande universidade pública. Era deveras um bom dramaturgo, repete o diretor sempre que dele se recorda, por isso também insistimos na peça das cinco mulheres e um alquimista, e isso tem me deixado confortável na vida, confesso, mesmo porque ensaiá-la seria inútil - ainda que eu buscasse apagar os diálogos da memória, saberia o começo, meio e fim, e como são dispensáveis aquelas palavras tônicas e banais, por mim, ao menos cinco cenas seriam abolidas, ninguém sentiria falta, nem mesmo o diretor.
A primeira noite de apresentação findou absolutamente normal, e seguiram todos caminhando de volta ao hotel. Eu atrasei o passo e passei a me sentir bem por nada, quem sabe foi o cheiro da noite quando perto da natureza que me surge sempre tão reminiscente e lembro de casa, de minha mãezinha, de meu querido avôzinho, dos bichinhos. E por ser de lá, do interior do mato, não tenho medo do escuro, e tento desenvolver prosopopeias enquanto dou curtas passadas, lembrando algumas passagens dos bons livros que tenho lido. Um único estabelecimento estava ainda com as luzes amarelas vivas desde que abandonamos o colégio. Todos continuaram andando, eu resolvi entrar.  De imediato, vi algumas mesas encostadas na parede com apenas uma cadeira cada, o balcão de escura e robusta madeira maciça, as bebidas expostas nas prateleiras com o fundo espelhado, uma pia, e alguns copos molhados. Sentei-me ao balcão com a mesma sensação que acima descrevo, quem sabe mais acentuada por conta da minha inspiração literária daquela noite.  
Surgiu-me então um moço da minha idade, certamente escolhido entre os deuses para ser o mais belo homem de todo o meu imaginário, e me olhava sério desde quando cruzou a porta que escondia a cozinha. Não me disse, não me sorriu. Apenas ergueu as sobrancelhas como quando se economiza cumprimentos. Optei por uma taça de vinho, que me foi servida em um copo, e degustei enquanto observava atentamente todas as ondas sonoras daquele ambiente. E de repente olhava o rapaz, quase sempre encostado na pia, com os olhos fitando a porta de entrada, como se esperasse outro freguês, ou como se não quisesse me olhar. Da metade do copo em diante, tomei em goladas rápidas, e não tardei em perceber que estava completamente só. Ouvi o pesado balançar das árvores em ventos já austeros. Deixei um trocado sem me despedir, quando ouvi a seguinte exclamação: pode ir sem medo. Que alívio me causou no corpo esta única frase que ecoou dentro do boteco durante os trinta minutos que ali fiquei, e fui-me. Fazia frio e já próxima ao quarto, especificamente no corredor, ouvia burburinhos das outras atrizes. Quando entrei, de imediato avistei uma cama vazia, a minha, tratei de cuidar dos pensamentos e antes mesmo de adormecer, já havia decidido que após a peça, tomaria outro copo daquele vinho.
Durante o dia, eu caminhava no vale que tinha ao lado do hotel, tão gracioso e verde, com alguns gatos que me atravessavam correndo, algumas vacas que me observavam de longe e quase nenhuma pessoa se mostrava naqueles casebres bem fechados. Logo o dia escurecia, e eu estava bem curiosa. Após a peça, Tina perguntou-me se valia a pena parar no boteco esta noite, enquanto já quase perto dele estávamos, eu a convidei e entramos. Pedi um vinho e Tina uma cerveja. Dessa vez o rapaz fechou-se por de trás da porta. Ficamos eu e ela em silêncio, porém próximas fisicamente, de modo que meu corpo se inclinava mais em direção ao dela, permitindo-me uma visão aforada de seu perfil facial. Que nariz bonito tinha a Cristina, bem desenhado e pequeno, mais bonito que o meu, pensei, e logo notei seus lábios, bem vermelhos do frio, e macios certamente, e por alguns segundos me subiu um calor enciumado, e já a culpava antes mesmo de conquistar os olhares do rapaz quando ele retornasse. Contudo era bom não estar completamente só como na noite passada. 
Esse lugar é estranho, foi a primeira coisa que ela me disse - melhor irmos. Sinto um pouco de medo de voltar sozinha. Acomodou sua bolsa em seus ombros delicados enquanto jogava seus cachos tão bonitos pra trás das costas. Eu disse que não havia problema e que ontem fiz todo o caminho sem nenhuma interrupção externa. Cristina era bem mais escolada que eu, nasceu na capital, desde os dezesseis anos vive emancipada. Ela nunca me sorria, nem mesmo me perguntou se eu a acompanharia. Sumiu ao fechar as portas do bar. Deixei que fosse. Chamei por alguém e me vem o rapaz. Mais um copo de vinho e perguntei o seu nome. Perguntei mais algumas coisas que por ora não me recordo, reparava nos dentes caninos que se mostravam entre uma palavra e outra, e imaginava que aqueles beiços bonitos escondiam uma grande cara risonha. Francisco era fechado, quase sempre monossilábico, mas sorria com os lábios quando eu falava algo de sua aparência, elogiando-o na maioria das vezes. Eu passaria a noite toda o mirando, até arrancar-lhe um sorriso e me apaixonar de vez. Faltava apenas me certificar dos dentes daquele moço galego com a pele bronzeada, cuja origem dos pelos dourados quem sabe seja de trabalhar no sol, na fazenda que devia ter ali por perto - assim gosto de imaginar. 
Não era casado e não tinha filhos - e estava só de passagem, era o que ele dizia. Bem sabes, mulher, que não é do meu feitil fazer muitas perguntas seguidas a alguém que nada me pergunta, até porque sei que não preciso descer tão baixo com um homem, muito bem reconheço minha aparência, a mesma que me garantiu o papel principal na peça das meninas, cuja personagem se entrega a uma mórbida tristeza por culpar-se de ser tão bela. 
Recitei a ele pequena parte de minha fala na peça. Assim diz;
Se então os mares são mais belos que eu,
como podem viver sem se culpar?
O olhar infame da lua os alenta
É incapaz de fazê-los secar.
De minha beleza se nutrem demônios
Em noites frias vêem me atiçar
Eu preferia ter nascido morta
Acho até que irei me matar.
Quem disse isso? Francisco me fez a primeira pergunta. Helena, respondi num impulso quase mecânico. Vá me assistir. Estaremos em cartaz até amanhã aqui em tua cidade. Não é minha cidade, disse ele. Estou só de passagem. Levantou meu copo, passou um pano úmido no balcão e voltou para a cozinha numa atmosfera melancólica e fechada. Esperei por Francisco cerca de uma hora enquanto folheava o livro que tinha comigo. Tudo foi ficando meio chato, nem mesmo as palavras em latim prendiam-me a atenção. Resolvi que iria embora, já estava um pouco cansada dessa comunicação lacônica, e isso não o tornava mais interessante. De tão irritada que fiquei com tamanha escassez de atenção, julguei-o burro, e por vergonha de mim, se fechava em sua redoma carente de ideias. É comum que mulher assuste, tanto comum é não vir mulher alguma nesse lugar decadente. E pensei ser melhor mesmo o desencanto, uma vez que se ele fosse de todo cativante, me seria um grande problema, pois me poria de quatro, e eu não voltaria pra cidade. Catei os reais quando num súbito espaço irracional do tempo reverti o mau julgamento que fizera, e por ele chamei. Chamei durante alguns segundos, e nem tinha me dado conta que passei muito tempo em devaneio, sem que ouvisse um barulho de passadas no chão ou estalar de madeira, de talher quando encosta o prato, nem mesmo me senti  sozinha. Pulei o balcão e tentei abrir a porta que engolia Francisco por vezes, e estava trancada. Senti meu corpo gelando todinho, tentei racionalizar os alertas da minha respiração e me notei com medo, problematizando toda a condição na qual me encontrava - desde estar completamente só num estabelecimento estranho, até o fato de voltar só para o hotel, já de madrugada. 
Quando me pus de saída, para o meu total desespero, encontrei a porta da frente fechada. Gritei ao sentir o ímpeto de pavor me sugando a consciência. Gritei por Francisco. Pulei de volta em busca da porta da cozinha, chutei com força desconhecida e ela se abriu em sons apavorantes... Como senti medo, Morgana, imaginas o medo que senti e sinto antes mesmo de enxergar o que te narrarei agora?
Primeiro vi os pés que na altura de meus ombros balançavam numa esfera sufocante, subi os olhos, não queria que fosse verdade, Morgana, não queria ter visto os olhos de Francisco revirados como se fitassem a porta, como se clamassem por mim. 




Kamila C.
São José, agosto de 2017.




Comentários

  1. Surpreende o conto, Kamila, mas a atmosfera dele mantém algo de humanamente tão íntimo que é capaz de traduzir a irreconciliação, a estranheza, o absurdo, da relação entre nós e o mundo, e por isso a mim diz mais que uma surpresa. Vale a leitura de Dentro da noite, conto do brazuca João do Rio, que é bem outra coisa, mas também surpreendente.

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    1. Dentro da noite de João de Rio é estranhamente inspirador. Obrigada por me apresentá-los, o conto e o escritor.

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